Crônica - Roniwalter Jatobá

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 14 - Fevereiro 2010


Casa Paterna

Tenho em casa uma fotografia amarelada pelo tempo. É o mais antigo registro da secular família do meu avô paterno. No verso, numa caligrafia bonita, o “velho” anotou uma dedicatória a um parente distante. No final, registra o ano da pose fotográfica: 1937.

Ali está a família reunida na véspera de uma festa em Bananeiras, sertão baiano. Reconheço em sérios semblantes algumas tias já adultas e dois tios, ainda crianças. Um quadro incompleto. A maioria estava longe, muitos haviam sumido em busca de seus destinos pelo mundo.

Sinto a falta, entre as mulheres, de tia Nanã, que há pouco realizara seu casamento. O pai, o mais velho dos homens, já vivia pelas minas do Mimoso, à procura de cristal de rocha e pedras preciosas. O tio Preto, assim apelidado devido à coloração mais escura de sua pele, também seguira as mesmas trilhas do garimpo, mas contam que infernizava a todos pelo vício nos jogos de azar. Na mesma época, o tio Olegário já havia partido para o Rio de Janeiro, fascinado pelo futuro na então Capital Federal, e para onde seguiria, depois, também o tio Deco. A velha foto mostra que, pouco a pouco, a família ia se fragmentando, com cada filho criando asas após a fase adulta.

Leio outro dia que um recente relatório do Eurostat, o instituto de estatísticas da União Européia, revelou o que vem mudando em relação à família. Os jovens europeus relutam em deixar o colo da “mamma”. Segundo um escritor italiano, Piero Citati, eles pertencem a uma geração de eternos adolescentes, que não têm pressa nem interesse em crescer e, ao contrário de seus avós, não querem se tornar adultos tão cedo. Na verdade, retardam o mais que podem o abandono da casa paterna e o casamento.

Os italianos são campeões no chamado mammismo. Em 1987, 60% dos rapazes e moças continuavam a viver – na maioria dos casos, economicamente independentes – na casa dos pais. Oito anos depois, em 1995, aquela porcentagem havia crescido bastante: 71% dos jovens italianos passaram a considerar desnecessário e pouco interessante viver por conta própria, ou seja, longe da saia da mãe.

Também no Brasil, a casa de “painho” e “mainha” também virou refúgio seguro. Antes, sair de casa aos vinte anos era obrigação. Hoje, seja pela acomodação da juventude ou pelo funil cada vez mais estreito no mercado de trabalho, mudou a situação.

– Quem não gosta de chegar em casa e encontrar a comida pronta? – me disse recentemente uma paulistana no restaurante Consulado Mineiro.

Sábia justificativa. Outra amiga tentou sair de casa e, em pouco tempo, se arrependeu.

– Fui morar com um bando de amigas e me sentia muito invadida – me revelou. – As pessoas usavam minhas roupas, comiam aquilo que eu comprava. Na hora de pagar o aluguel, era uma loucura, nem todas tinham dinheiro.

A gota d’água para voltar para a casa dos pais foi o furto de um objeto de estimação.

– É preciso saber a hora certa de sair de casa. Se for para cair fora e não ficar legal, de que adianta?

A primeira vez que deixei a casa paterna tinha 16 anos. Por um longo ano, morei no Rio de Janeiro. Desempregado a maior parte do tempo, foi difícil a distância do lar. No retorno, minha mãe chorou ao me ver magro com cara de faminto. Realmente abatido, por dois meses caminhei solitário pelas margens do rio Aipim, tentando resgatar a tranqüilidade perdida.

A partir daí, chegou o medo. Embora sentisse necessidade de romper os laços com a casa paterna, vinha o receio de encontrar os mesmos obstáculos da primeira viagem. Sofria. Quando imaginava a visão da cidade grande, sentia calafrios e vinha o temor de desistir nos primeiros dias.

Em 1970, depois de dar baixa do Exército em Salvador, finalmente decido viajar para São Paulo. No ônibus, nos caminhos de Minas e Bahia, sentia temores e tremores. Já me via perdido no mundo. Impelido pela velocidade do veículo que percorria a Rio - Bahia, porém, reuni força, fantasias e sonhei.

Muitos anos depois, sou capaz de concordar com os jovens de hoje. Já superei a casa dos 60 anos, mas ainda mantenho a intuição de um adolescente que adora raspar os fragmentos do doce de leite preparado pela mãe numa panela de cobre, no calor fumegante do fogão a lenha.

Roniwalter Jatobá nasceu em Campanário, MG, em 1949. Aos 10 anos, migrou com a família para Campo Formoso, sertão da Bahia. Desde 1970 vive em São Paulo. Como jornalista, trabalhou na Editora Abril e Editora Globo. Foi redator dos fascículos Nosso Século e Retrato do Brasil e colaborou em Movimento, Escrita e Versus. Atuou, também, como cronista do Diário Popular. Publicou, entre outros, os livros Sabor de química (1977), Crônicas da vida operária (1978), Filhos do medo (1980), Viagem à montanha azul (1982), O pavão misterioso e outras memórias (1999), Paragens (2004), Trabalhadores do Brasil: histórias do povo brasileiro (1998, organizador) e Viagem ao outro lado do mundo (2009). Pela editora Nova Alexandria, publicou Rios sedentos (2006), voltado para o público infanto-juvenil, Contos Antológicos (2009) e, para a coleção “Jovens sem fronteiras”, O jovem Che Guevara (2004), O jovem JK (2005), O jovem Fidel Castro (2008) e O jovem Luiz Gonzaga (2009).