Crônica - Suzana Cano

Em associação com Casa Pyndahýba Editora
Ano II Número 14 - Fevereiro 2010


Procura-se e talvez não se queira achar

Não é só a gente que se apaixona pelos livros e pensa neles como seres profundos, inesquecíveis, insubstituíveis, até que eles somem de repente, daí trocamos aquele encantamento único por outras publicações e até nos esquecemos do que em alguns casos foi um amor patológico. Alguns livros nos fazem sofrer e até imitar comportamentos de heróis questionáveis, alguns nos elevam e outros nos vencem.

Suspeito que os livros também se apaixonem por nós, por nossa dedicação e encantamento, e às vezes voltam ao nosso convívio de surpresa, sem pedir licença, sem dar satisfações, assim, sem mais não, acabam de novo causando paixão e descoberta.

Tive essa prova concreta agora em minha casa no dia 25 de janeiro de 2010. Ouvia de longe o noticiário numerar de acordo com os cálculos da ONU os mortos da catástofre no Haiti, ao mesmo tempo uma escola de samba enfrentava a chuva no Anhembi para o ensaio técnico, a Leandro de Itaquera, aqui bem perto, e eu ouvia tudo, olhava a chuva e folheava um desses livros misteriosos, que como diria Vinícius de Moraes não aparecem, surgem.

Era “O Homem Rouco” de Rubem Braga, esse eu não comprei, tenho certeza, também não peguei emprestado, mas já estava no meu colo. A capa é de José Medeiros, titulada IMAGE, é um azul que eu gosto, um azul positivo, não é blue de blues nem blue de triste, é turquesa, nascente, ainda estrelado, ainda otimista, uma janela.

Encontrei no meio desse amarelado livro, comprado no sebo Trem das Sete, na rua Clementino Pereira, 521 no bairro do Ipiranga em 2004, ah, espera, antes pertenceu ao Sr. Flávio M. de Martinho, esse nome foi assinado na perpendicular da segunda página com caligrafia de contador, em 1972, ano em que nasci. Agora sim, depois de identificadas todas as procedências e perceber marcas de caneta em bons trechos, marcas com chave, quem se lembra disso, depois que o mundo acadêmico instituiu entre aspas, adorei essa chave em esferográfica vermelha, também encontrei um convite de festa de casamento com muitos plurais em letra itálica.

Mas a grande descoberta foi uma crônica que marcou minha adolescência. Procura-se. Qualquer pessoa pode ler na íntegra esse texto com o auxílio de São Google. Mas eu não tinha o título. Me lembrava apenas da expressão do caderninho azul, alguma coisa de sangue e lágrimas, de amores contrariadíssimos, que foi perdido em outubro de 1948. Mas é na verdade “ um pobre caderninho azul escrito a lápis e tinta e sangue, suor e lágrimas, com setenta por cento de endereços caducos e cancelados e telefones retirados e, portanto, absolutamente necessários e urgentes e ir- reconstituíveis” esse Rubem é de doer.

Eu tinha lido isso mais ou menos aos treze anos numa daquelas edições de literatura comentada onde no primeiro colegial a gente via de fragmentos de Gil Vicente – a educação sentimental lusitana a Haroldo de Campos e sua musicalidade asa da palavra.

Sei que algumas vezes digitei, pesquisei, mas não conseguia encontrar o texto inteiro porque sou impaciente e muitas vezes tudo se tinge de cinza ou fica turvo e eu não vejo direito, eu não tenho a determinação dos bons cineastas, muito menos a propriedade para dissecar detalhes dos criadores de filmes de animação, mas talvez seja tudo assim mesmo Sr. Rubem Braga, essas coisas assim lindas de doer talvez tenham essa particularidade: “procura-se, mas talvez não se queira achar”.

Suzana Cano dá expediente no Cristal Liquido e tem seus escritos publicados em vários blogs.